E se Moisés morasse em Nova York? Um jornalista americano decidiu passar um ano inteiro seguindo as leis bíblicas ao pé da letra.
Jesus respondeu, e disse-lhe: “Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo não pode ver o reino de Deus”.
Disse-lhe Nicodemos: “Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, tornar a entrar no ventre de sua mãe, e nascer”?
João, 3:3-4
Nicodemos não era burro nem ignorante. São Nicodemos, aliás, era um homem letrado, um rabino do sinédrio de Jerusalém – algo como o Supremo Tribunal da Judéia nos tempos bíblicos. Jesus falava de renascimento espiritual, mas o sábio tomou demasiado literalmente Suas palavras, como mostra o Evangelho de São João. Se até os contemporâneos de Jesus tinham problemas com tantas parábolas, metáforas e alegorias, imagine o que não ocorre às pessoas do século 21, desacostumadas ao estilo empolado em que os livros da Bíblia foram escritos, milhares de anos atrás.
Aqueles que interpretam a Bíblia ao pé da letra não apenas existem, como têm voz no gabinete presidencial dos EUA. São os fundamentalistas bíblicos. Eles crêem que o Universo foi criado em 7 dias de 24 horas e não duvidam que Matusalém tenha morrido aos 969 anos (e concebido um filho aos 187 anos). Mais: a palavra é a lei. Se os livros mandam dar o dízimo, lá se vão 10% da renda da pessoa; se os textos sagrados condenam a luxúria, é dever zelar pela castidade – a própria e a alheia.
O jornalista americano A.J. Jacobs fez uma lista de 72 páginas com mais de 700 regras, do Gênesis ao Apocalipse, que arbitram a conduta do homem comum. Decidiu que passaria um ano vivendo de acordo com os preceitos bíblicos, interpretando sozinho as escrituras. E encarnou o “fundamentalista máximo”, como ele define na introdução do livro que resultou desse projeto, The Year of Living Biblically (“O Ano em Que Vivi Biblicamente”, ainda sem previsão de lançamento no Brasil).
Jacobs, um judeu que se define como agnóstico no início do livro, dividiu sua missão da seguinte forma: apenas os 3 últimos meses seriam dedicados ao Novo Testamento, exclusivo dos cristãos; os 9 primeiros abordariam o Velho Testamento, que cobre um período histórico muito mais extenso e também é adotado pelo judaísmo. Muitos dos ditames dos livros mais antigos já são observados pelos judeus de correntes ortodoxas.
No decorrer do tal ano bíblico, Jacobs foi se metamorfoseando numa espécie de Moisés a perambular pelas ruas de Nova York. Parou de aparar a barba (Levítico, 19:27), usou azeite como condicionador capilar e passou a vestir uma túnica branca (Eclesiastes, 9:8). Ainda no quesito vestuário, livrou-se das peças cujo tecido misturava lã e linho, pois a lei sagrada proíbe tal combinação (Levítico, 19:19).Jacobs esperava ser o único americano do século 21 a cumprir tal norma, mas encontrou um inspetor religioso especializado em examinar as roupas alheias ao microscópio, para detectar as fibras proibidas.
Julie, a mulher de A.J., não ficou lá muito contente com o novo visual do marido, mas foi outra regra bíblica que balançou a casa dos Jacobs: a proibição de tocar mulheres durante o período menstrual (Levítico, 15:19). Da porta para fora, tudo era uma maravilha para Julie. Ele não encostaria em nenhuma outra mulher, sequer apertaria sua mão, já que não poderia saber se ela estava ou não naqueles dias – exceção feita para uma colega da redação da revista Esquire, que lhe enviou as datas por e-mail. Dentro de casa, porém, a coisa ficou feia. A regra é clara e diz que a impureza da mulher menstruada se transmite para onde ela repousar o traseiro. Para contagiar o marido com sua irritação, Julie passou a sentar em todas as cadeiras do apartamento. Nosso herói não teve outra saída senão comprar um banquinho portátil que, quando dobrado, vira um cajado. Nada mais bíblico.
A esta altura, você já deve ter notado que uma boa parte das citações deste texto tem origem no Levítico. Esse é o livro que descreve o episódio em que Deus chama Moisés para o topo do monte Sinai e lhe dita os 10 mandamentos. Mas a coisa não acabou aí: Moisés passou 40 dias escutando as leis que o Senhor tinha a passar para o povo de Israel. Algumas diziam respeito à alimentação. Porco não pode (11:7). Coelho não pode (11:5). Escargot não pode (11:30). Camarão não pode (11:12), independentemente do tamanho – por acreditar que existam crustáceos microscópicos na água encanada de Nova York, alguns rabinos de lá recomendam o uso exclusivo de água mineral.
Jacobs obedeceu a todas as proibições.Mas o que de fato chamou sua atenção foi um alimento permitido: insetos saltadores (Levítico, 11:22). E por que diabos (ops!) comer grilos e gafanhotos? “A única referência a esse hábito na Bíblia é a história de são João Batista, que sobreviveu à base de gafanhotos e mel”, diz Jacobs no livro. O autor, então, agiu como o santo: encomendou uma caixa de bombons de grilo e, mui biblicamente, repartiu a refeição com um relutante amigo. Nojento? Talvez, mas nada mais que isso.
Já a ordem bíblica para apedrejar adúlteros (Levítico, 20:10) induz ao crime de assassinato. O sagazJacobs encontrou um jeito para obedecer à lei divina sem cair nas malhas da lei mundana. “A Bíblia não especifica o tamanho das pedras”, afirma. O que ele fez, então? Encheu o bolso com pedregulhos e foi à cata de uma vítima, o que deveria ser a parte mais difícil da tarefa. Eis que um desconhecido de 70 anos ou mais agrediu verbalmente nosso aspirante a beato, perguntando por que ele “se vestia como uma bicha”. Jacobs explicou que estava lá para apedrejar adúlteros. “Eu sou um adúltero”, disse o homem – e levou uma pedrada de leve no peito. Ponto para o vingador bíblico.
Manter escravos também não pega muito bem no Ocidente do século 21, mas era prática corrente em todo o mundo na Antiguidade. O Velho Testamento, inclusive, traz instruções para espancar o servo sem causar sua morte imediata (Êxodo, 21:21) e recomenda não arrancar seu olho (Êxodo, 21:26), sob pena de ter de libertá-lo. Jacobs já havia desistido do personal escravo quando recebeu o seguinte e-mail: um universitário se oferecia como estagiário particular. “Qual é a coisa mais próxima da escravidão nos EUA?”, pergunta o autor. “Estágio não remunerado”, responde ele mesmo. “Caiu do céu.” O rapaz aceitou a condição do escritor – que exigiu chamá-lo de “escravo” –, mas o pior castigo que recebeu foi tirar algumas cópias xerox.
Para que fazer tudo isso, afinal? O apedrejamento e o escravo foram apenas brincadeiras – embora o estagiário tenha realmente caído do céu. De resto, Jacobs não se ocupou somente de costumes exóticos e bizarros para faturar com o livro (a honestidade bíblica o obrigou a dizer que esse era, sim, um dos motivos de seu projeto). Ele impôs a si mesmo uma rotina de rezas (Salmos, 105:1), de caridade (Lucas, 11:41), de respeito às tradições de seu povo e aos idosos (Levítico, 19:32). Até palavrão ele parou de falar (Efésios, 5:4).
Essa parte menos espetacular do ano bíblico de Jacobs foi justamente a mais difícil. Para reprimir a luxúria (Oséias, 4:10), o autor cobriu com fita adesiva as imagens de potencial apelo sexual de sua casa – inclusive a foto de uma mulher vestida de gueixa numa caixa de chá. Não funcionou. O método mais eficiente de resistir à tentação, segundo ele, era pensar na própria mãe (aqui temos um claro abuso do voto de honestidade do autor).
Também a cobiça (Êxodo, 20:17) foi dura de controlar. Um dia, Jacobs listou as coisas que cobiçara desde a manhã: o cachê que outro escritor cobra por palestra, um computador PDA, a paz mental do fulano da loja de Bíblias, o jardim da vizinha, George Clooney e o roteiro do filme Como Enlouquecer Seu Chefe, de Mike Judd. E isso ele escreveu às 2 horas da tarde.
O maior desafio de A.J. Jacobs, contudo, foi a fé – que, convenhamos, é um requisito e tanto para ser plenamente bíblico. O escritor do início do livro é um homem de 38 anos, com um filho de 2 anos e uma enorme vontade de aumentar a família (Gênesis, 1:22). Ele não tem fé, mas sente falta de um alicerce moral para o próprio lar e mergulha na religião, um terreno desconhecido. Nos primeiros meses, sente-se desconfortável ao rezar; perto do fim do projeto, experimenta o êxtase místico – dançando feito um rabino louco ao som de Beyoncé, na festa de 12 anos (bat mitzvah) de uma sobrinha. Mas ainda se declara agnóstico.
Aparentemente, o cara conseguiu encontrar o sentido que buscava. E uma explicação, embora nem sempre convincente, para cada uma das regras bíblicas. A enorme barba, por exemplo, serve para indicar que se trata de um homem de paz. Um guerreiro nunca a usaria, pois o inimigo se agarraria aos seus pêlos – assim lhe disse um líder religioso em Jerusalém.
Jacobs encontra sentido até no mais estapafúrdio dos mandamentos, que ordena decepar as mãos da mulher que agarrar “as vergonhas” do oponente de seu marido em uma briga (Deuteronômio, 25:11-12). Aqui, a mensagem oculta é: a mulher causou vergonha tanto ao próprio marido (que venceu a luta injustamente) quanto ao inimigo dele. A interpretação rabínica das escrituras diz que a mulher que envergonha o marido deve pagar uma multa – a mutilação é metafórica.
Se os judeus aceitam como metáfora uma ordem divina e os cristãos ignoram muito do Velho Testamento – a vinda de Cristo teria anulado a necessidade de circuncisão, entre outras coisas –, quem segue a Bíblia ao pé da letra, de cabo a rabo? “Ninguém”, conclui Jacobs, “nem os fundamentalistas”. Quem se propõe a fazer uma leitura literal da Bíblia acaba sempre escolhendo o que vai obedecer.
Para saber mais
A.J. Jacobs, Simon & Schuster, EUA, 2007. Versão digital disponível para download em: ebooks.palm.com
Bíblia Sagrada
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